Nascidos em corpo de mulher, eles lutam para se transformar
fisicamente e pelo direito de usar o nome masculino na faculdade, no
trabalho e na carteira de identidade
Por
Mariana Sanches. Fotos Gabriel Rinaldi
O guarda civil Márcio Régis Vascon se formou em Direito.
Na colação de grau pode ser chamado pelo nome social
O
coração de Márcio Régis Vascon batia acelerado sob a beca preta, em uma
noite quente de dezembro passado. Às vésperas de completar 40 anos,
faltava a Régis dar apenas alguns passos para realizar um sonho
interrompido vinte anos antes. À beira do palco, sob o olhar atento de
quase 500 pessoas, no anfiteatro da Universidade Paulista, em Campinas,
ele estava prestes a receber o canudo de Bacharel em Direito. As batidas
desenfreadas no peito, no entanto, não eram só de alegria. Eram de
aflição. Com o rosto forrado de barba, o cabelo cortado rente ao
crânio, o rosto anguloso e a voz grossa, nada em Régis fazia lembrar o
universo feminino. Mas, ele nasceu mulher. Em seus documentos,
até hoje, consta o nome de batismo — Márcia Regina — dado pela mãe.
Naquela noite, havia prometido a si mesmo que não subiria ao palco se
fosse chamado de Márcia. Acionou a Defensoria Pública do Estado de São
Paulo para que tivesse direito de ser chamado por seu nome social. Um
ofício determinava que a faculdade o respeitasse. Quando seu nome — Márcio Régis — foi anunciado, todos os colegas levantaram para aplaudi-lo. Ao longo dos cinco anos de curso, Régis não lutou só pelo grau de Bacharel em Direito. Lutou pela própria identidade.
Régis é um homem transexual. Diferente
da homossexualidade, a transexualidade é descrita pela Organização
Mundial da Saúde como um transtorno de identidade de gênero, em que o sexo biológico não condiz com a identidade de gênero da pessoa. A condição de Régis é conhecida pela sigla FTM (Female To Male, ou feminino para masculino). É
um fenômeno mais raro do que aquele em que alguém nascido homem deseja
transformar-se em mulher, caso da modelo brasileira Lea T.
Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, há
uma mulher transexual a cada 30 mil pessoas e apenas um homem transexual
a cada 100 mil.
Embora a transexualidade seja um
fenômeno mundialmente reconhecido desde a década de 80, o Brasil
avançou pouco no respeito aos direitos dos transexuais.
Enquanto a Argentina aprovou, em maio, uma lei que permite que o nome, o
gênero e a foto de documentos de identidade sejam modificados por
qualquer pessoa maior de 18 anos que não se reconheça no gênero
registrado na certidão de nascimento, aqui, essa decisão ainda cabe ao
juiz e às suas convicções. Não há marco legal ou jurisprudência em
relação ao resultado de processos de troca de nome. As ações chegam a
levar três anos, ou mais, para ser julgadas. E, frequentemente, o
resultado é negativo. “Infelizmente, há uma influência forte dos
preceitos judaico-cristãos no Judiciário, o que tem impedido decisões
mais progressistas”, afirma o juiz Roberto Coutinho Borba. Em
2009, em Bagé (RS), o juiz Borba deu uma das raras decisões favoráveis à
troca de nome. Uma cabeleireira, conhecida na cidade como Verônica,
pôde ter seu nome de registro — Antônio — substituído pelo nome
feminino. “Ela ainda não tinha sido operada para mudar de sexo e, por
isso, os meus colegas não autorizaram a troca de nome. Mas ela já
tinha feições femininas e sua vida estava completamente parada por
conta do nome. Ela não conseguia comprovar sua identidade, abrir conta
em banco, estudar, porque seus documentos de homem não condiziam com
suas características femininas”, afirma Borba.
“A influência da religião no judiciário impede decisões a favor da troca de nome” Roberto Coutinho Borba, juiz de Direito
EXCLUSÃO
Os juízes que optam por não autorizar a troca de nome argumentam que,
sem a cirurgia de mudança de sexo, todas as transformações físicas são
reversíveis. Para eles, alterar os documentos nessa condição seria
facilitar o crime de falsidade ideológica, em que uma pessoa se faz
passar por outra. Na prática, a opção dos juízes tem excluído
milhares de pessoas de escolas, faculdades, do mercado de trabalho,
enfim, da cidadania. Isso é especialmente verdade para os homens transexuais.
No
caso das mulheres trans, o desejo de se transformar costuma ser mais
facilmente satisfeito. Além de usar hormônios femininos e de implantar
silicone para dar forma aos seios, elas têm à disposição uma técnica
cirúrgica segura para criação de vagina. O Sistema Único de Saúde (SUS)
realiza o procedimento gratuitamente. Em clínicas particulares, a
cirurgia de neovagina pode custar até R$ 40.000. Cenário muito diferente
é aquele encontrado por homens transexuais. Se, por um lado,
100% deles sonham em ter um pênis funcional e em dimensões normais, por
outro, dos cinco entrevistados por esta reportagem, nenhum se disse
disposto a fazer uma faloplastia. Esta consiste num conjunto de
complicadas interveções cirúrgicas que promete formar um pênis de até
dezoito centímetros de comprimento. Primeiro, um tubo de material
cirúrgico é implantado no braço do paciente. Durante alguns meses,
tecidos e enervações serão formados em torno desse tubo. Uma nova
cirurgia será feita para retirá-lo do braço. Os médicos, então, usarão a
pele da superfície de uma das coxas do paciente para envolver o tubo. A
pele da planta do pé serve para desenhar a glande. Tudo será
incorporado à genitália do trans. Embora o Hospital das Clínicas de São Paulo já realize a faloplastia, a técnica é considerada experimental.
O pênis criado a partir da cirurgia raramente é capaz de gerar
orgasmos, não costuma ficar ereto e, em alguns casos, é rejeitado pelo
organismo, levando à necrose de toda a genitália e de parte do sistema
urinário. O pós-operatório delicado pode levar à morte.
Diante
dos enormes riscos envolvidos e da posição inflexível de alguns juízes,
os homens trans se viram num limbo jurídico. A ação da Defensoria
Pública começa a desfazer esses nós junto às faculdades e às empresas
onde os transexuais estão. É uma maneira de fazer com que eles existam e
sejam respeitados em seu cotidiano, entre seus colegas de classe,
chefes e subordinados. “Há um decreto estadual em São Paulo que recomenda o uso do nome social em repartições públicas.
Com base nele, estamos pedindo a mudança do tratamento dos trans nas
faculdades e empresas privadas. Se há resistência, ameaçamos abrir um
processo judicial”, afirma a defensora Maíra Diniz. “Não importa se o
trans é operado ou não, isso é apenas um detalhe. Mas o nome não é um
detalhe. O direito à identidade independe do sexo biológico. Trocar o
nome de alguém em documentos não é difícil e não traz insegurança. Se
fosse assim, o ex-presidente Lula não poderia ter incluído o apelido no
nome de registro.”
PRECONCEITO Foi
graças à atuação da Defensoria que Régis teve o reconhecimento público
que tanto esperava no dia da sua colação de grau. Expulso de casa pela
mãe aos 23 anos, assim que ela descobriu que ele tinha uma namorada,
Régis trabalhou como babá e como servente de pedreiro, até passar no
concurso para Guarda Civil em Campinas, São Paulo. Há seis anos,
começou sua transformação física. Com a supervisão de um
endocrinologista, passou a tomar uma injeção de testosterona por mês.
Uma cirurgia retirou todos os órgãos sexuais femininos de Régis.
Conforme a barba crescia e a voz engrossava, sua situação piorava entre
os colegas de farda. “A convivência era delicada porque a guarda é
extremamente machista. Até hoje, é frequente agressões contra
travestis”, afirma Régis. “Um dos guardas chegou a me dizer que, se ele
fosse Deus, pessoas como eu seriam queimadas na fogueira.” Para
testá-lo, os colegas começaram a exigir resultados exemplares nos testes
físicos obrigatórios. “Ficavam dizendo que era na corrida que eles
queriam ver se eu era macho mesmo.” Régis corria mais rápido do que
quase todo o pelotão, o que não é exigido de mulheres. Chegou a
completar os testes com o pé torcido. “Melhor isso do que aguentar as
piadinhas.” Quando pediu aos superiores para que seu nome na farda
passasse de Márcia Regina para Márcio Régis, a situação se complicou.
Ele chegou a sofrer sete processos administrativos ao mesmo tempo. “Eram
todos sem motivo. Fui exonerado com a justificativa de que eu era
incompetente. Mas a guarda nunca conseguiu provar isso e acabei
readmitido por mandado judicial”, diz Régis, que nunca quis deixar a
farda. Reincorporado ao trabalho, em vez de Regina, passou a sustentar
Vascon, seu sobrenome, na farda. Ainda assim, o comando nunca permitiu
que ele usasse o banheiro masculino em vez do feminino. “Eu ia na cara
de pau mesmo.”