Adelaide Ivánova, 30,
carinhosamente conhecida como Ivi, é brasileira de Recife e desde o
começo de 2011 vive em Berlim. Pra Alemanha foi mesmo por amor, dois: a
fotografia e Armin.
Antes de viver em terras germânicas, foi
paulistana de coração por uns anos e aqui trabalhou fotografando moda.
Da moda, tirou inspiração e um senso estético que dialoga de forma única
com seu estilo de imagem e os temas que escolhe. Consegue falar de
dores e de alma através de imagens limpas, rosadas, granuladas e
simples.
Seu mais recente projeto, de título que lembra verso de prosa “Autotomy
is the ability some animals have to change or mutilate their bodies to
look like something else and protect themselves from the world and I was
amazed to notice that we all do it, not just sea cucumbers”
("Autotomia é a capacidade que alguns animais têm de mudar ou mutilar
seus corpos para se parecerem com outra coisa e se protegerem do mundo.
Fiquei espantada ao perceber que todos nós fazemos isso, não apenas os
pepinos do mar"), foi a primeira série produzida totalmente em Berlim.
Até o ano passado, ainda teimava em registrar o Brasil, mesmo morando
fora do país e precisando fazer longas viagens pra conseguir isso. É o
caso do seu último projeto realizado por aqui, It's ok to be a boy:
uma série lindíssima, embebedada por poesia e construída por memórias
pessoais fortes, do tipo cicatriz. Nele fotografou seus “pares”, meninas
que sofreram violência sexual.
Desta vez Ivi ainda trata de
sexualidade, mas de uma forma nova, tanto para seu trabalho, quanto em
relação às suas experiências. Usar a fotografia pra falar de
transexualidade também foi aprendizado. A convite do Centre d'art
Passerelle, em Brest, na França, escolheu acompanhar por meses a rotina
de dois meninos que vivem um processo de mudança de gênero. Na verdade,
eles nasceram meninas, mas se consideram homens e estão no caminho para
serem de fato eles, não elas.
Para a Tpm,
ela contou da experiência de fotografá-los e dos aprendizados com ela.
Falou ainda sobre a vontade de tratar a sexualidade mais uma vez e dos
rumos que seu trabalho vai tomando.
"Engraçado, eu nunca quis fotografar meninas que viram menino. Nunca me interessou. Nunca entendi como alguém que nasce mulher pode querer ser outra coisa além de mulher. Aí o destino, me ensinando a abrir meus horizontes mesmo quando eu não quero, agiu"
Abaixo, o texto que escreveu para a nova série:
Autotomia é a capacidade que alguns animais têm
de mudar ou mutilar seus corpos para se parecerem com outra coisa e se
protegerem do mundo. Fiquei espantada ao perceber que todos nós fazemos
isso, não apenas os pepinos do mar. No início deste projecto, o meu desejo era fazer uma reportagem sobre dois garotos transexuais que vivem em Berlim, Miki e Kai. Por meses eu os segui em suas atividades diárias, apenas para descobrir que, se eu quisesse descrever o que é ser transexual, seguindo-os não era o suficiente. Para contar este conto, eu considerava o meu corpo - e as experiências que ele viveu e sentiu durante a produção da série - como instrumento de narração. Para falar sobre ser transexual, sob a minha perspectiva não-transexual, eu comecei a "fotografar" os questionamentos que fui confrontada com toda a realização deste projeto: a idéia do sósia, o jogo de esconde-esconde de ser vs parecer e pensamentos sobre a feminilidade, disfarce, e transformação. |
Ivi. Ano passado fomos convidados pela curadora do Centre D'art Passerelle, em Brest (França), para produzir uma exposição coletiva sob o tema "juventude". Dentro desse espectro, cada um podia escolher uma pesquisa de seu interesse. Em princípio eu queria dar continuidade ao tema violência sexual, dessa vez aqui na Europa, mas não encontrei personagens. Em busca de um novo tema ainda ligado à sexualidade, comecei a me perguntar como é a vida de um jovem transexual. A gente vê transgenders maravilhosas como a Lea T. ou Amanda Lepore, mas elas são adultas, parecem estar bem na própria pele. E me intrigava muito pensar em como é passar por duas transições ao mesmo tempo, a da adolescência pra vida adulta, e a do gênero, tudo ao mesmo tempo. Foi aí que encontrei o tema.
Como os conheceu e por que os escolheu? Engraçado, eu nunca quis fotografar meninas-que-viram-menino. Nunca me interessou. Nunca entendi como alguém que nasce mulher pode querer ser outra coisa além de mulher. Então o projeto começou com Grete, que mora sozinha, ganha sua grana como bartender e estudou história da arte. Mas ela mudou de ideia e eu fiquei a ver navios. Aí tentei Kitana, mas a história de Kitana era mais triste, com um amante turco violento e sem estudos, e sem trabalho, e vivendo de seguro desemprego, ela era exatamanete o clichê da "vida dura de travesti" que eu queria fugir. Aí o destino, me ensinando a abrir meus horizontes (mesmo quando eu não quero), agiu: um dia, recebi um email de Michael, simplesmente se oferecendo pro projeto. Ele ouviu falar do meu trabalho na ONG em que é atendido e me escreveu.
Michael e Kai são meninas que querem ser meninos? É isso? Sim, eles nasceram menina mas sao meninos por dentro, fazem há 2 anos o tratamento de hormonio e estão na fila da cirúrgia de mudanca de sexo, que é bancada pelos planos de saúde. Tem todo um processo com terapeuta e assistente social pra conseguir uma autorização e demora. Mas é um direito e acontece sim.
Pode nos contar sobre a experiência desse tempo fotografando-os? Não foi a coisa mais gostosa do mundo porque, para além das questões de gênero, eu me deparei de novo com as questões sociais que queria evitar mas, dessa vez, me deixei levar. Michael e Kai abandonaram suas famílias e os estudos, vivem de ajuda social, não trabalham, não fazem nada e têm um nível de auto-piedade típico das pessoas com baixo nível de escolaridade em países ricos - quanto mais o governo dá, mais eles reclamam e menos agem para mudar a própria situação. Por outro lado, foi maravilhoso poder expandir minha visão do papel desenvolvido pelo corpo na construção da identidade, e poder acompanhar esse processo de maneira tão profunda como é para um transexual. Foi doloroso e muito bonito. Me influenciou bastante, também.
De que forma te influenciou? Estava sob um nível de pressão pessoal tão forte que tive uma crise de ansiedade, fiquei internada e tudo. Mexeu muito comigo, o mistério dessa transformação no corpo, até o nome "trans-gênero" era para mim um mistério, uma coisa inatingível, quase "infotográfavel" e, quando cheguei nessa encruzilhada, de achar que não consegueria contar essa história em fotos, tive um treco. Quando estive internada foi que percebi que era hora de usar o meu corpo e minhas vivências como narrador da história, daí os auto-retratos incluídos na série, as fotos encenadas e de infância, o bolo-de-rolo, etc.
Não é seu primeiro projeto que fala trata sexualidade. Primeiro o das meninas brasileiras que sofreram abuso, agora uma dupla de meninos transexuais. O que te atrai no assunto? E ainda teve o primeiro de todos, sobre androginia, feito em São Paulo em 2010. É claro que sei o que me atrai no assunto: meus traumas. E tudo bem, traumas são fonte de inspiração legítimas pra uma pesquisa em arte. O que eu tento e espero conseguir evitar é que o resultado final seja autoterapêutico. O processo é autoterapêutico, mas o resultado tem que ser universal. Mas o que me encanta para além de mim mesma, é a sexualidade ou desejos sexuais como ferramenta de autocompreensão.
Mesmo quando retrata temas polêmicos e fortes, suas fotografias continuam com cores leves, luz rosada e cenas simples e limpas. Pra você, como funciona esse diálogo? Eu acho pouco desafiador escolher um tema complexo e tratá-lo com complexidade. É a saída mais fácil: fotografar algo obscuro obscuramente. O desafio está exatamente em usar essa ambivalência, trabalhar em cima dela. Ok, eu tenho aqui na minha frente uma menina que foi molestada aos 9 anos e agora ganha prêmio de melhor atriz em festival de cinema. É lindo e, se as pessoas são tao inspiradoras, não tem como eu fotografá-las de outro jeito.
O que te inspira para criar essa estética?
Eu adoro fotografia de moda. Quando é boa, não tem melhor. Mas o que mais me inspira é literatura, o exercício de criar imagens mentais pras coisas que um autor descreve é de um imenso valor na hora de fotografar.
Você captura momentos não ensaiados ou planejados. E a sensação quando olho é de que alguns personagens são próximos seus, como amigos. Estou certa? Aí é que está o mistério da coisa. Michael e Kai não eram, nem viraram meus amigos. Mas eu me abri bastante, contei minha vida inteira pra que eles entendessem porque eu estava interessada neles e, quem sabe assim, eles se abrissem também suas vidas pra mim. Talvez haja intimidade nas fotos porque eles conheciam a pessoa que os estava fotografando, mais do que eu a eles. Não sei...
A série ainda está exposta na França? Tem planos de trazê-la para o Brasil? A exposição está atualmente em cartaz em Brest, na França, no Centre d'art Passerelle e em Nova York, na PowerHouse Arena, dentro da programação do Dumbo Arts Festival. A série ainda é finalista do premio do Festival de Fotografia de Nova York e foi do Festival de Fotografia de Atenas. Ano que vem, vai ser exposta no museu de Cottbus, um dos maiores da Alemanha, e depois segue pra Berlim, no Kunstverein Tiergarten. Depois não sei. Pro Brasil queria muito, mas inscrevi em dois festivais e nao foi aceito. Uma pena...
http://revistatpm.uol.com.br/so-no-site/entrevistas/quero-ser-menino.html#0
Vai lá: adelaideivanova.com
Reportagem enviada por Andressa Proença.
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