"Não existe política de capacitação do professor para ele entender que sexualidade é diferente de sexo"
O professor deve compreender o
desenvolvimento infantil para saber as possibilidades de compreensão das
crianças e conhecer as metodologias
de trabalho com educação sexual. Mas raros são os cursos de
Pedagogia que têm debatido esses temas.
Você já deve ter visto esta cena antes: uma criança pergunta à mãe como seu irmãozinho foi parar na barriga dela. A mãe finge não ouvir e desconversa. Ou que tal esta: um garoto desliza a mão para dentro do calção. O reflexo da monitora da creche é repreendê-lo por "isso". Também leva bronca quem cometer a traquinice de afagar o(a) coleguinha ou, mais inocente ainda, fizer cócegas nele(a).
Tudo isso porque um belo dia, quando a criança tem entre dois e seis anos, a sexualidade infantil - que parecia adormecida - acorda, toma sua vitamina e não pára de aprontar uma impertinência atrás da outra. Uma curiosidade insaciável sobre a diferença entre os corpinhos ou o nascimento dos bebês toma conta das crianças.
E agora: deve-se explicar tudo tintim por tintim ou é melhor adiar essa conversa, contando aquela da cegonha? Para buscar ajuda especializada, muitos pais recorrem às livrarias. Na hora de ampliar o acervo dos pimpolhos, Como Nascem os Bebês? ou De onde Viemos? vêm logo atrás dos contos da carochinha na lista dos livros mais procurados.
E os professores, como reagem a essas inquietações? Que material usam para tratar tema tão delicado? Foi isso que a professora Cláudia Ribeiro resolveu investigar. O resultado é o livro Sexualidade(s) e Infância(s) - A Sexualidade como um Tema Transversal.
Escrita a quatro mãos com Ana Maria Faccioli de Camargo, essa obra é uma coletânea de experiências pedagógicas. Em doze relatos, educadores - de Guaxupé (MG) a São Paulo (SP) -, contam como superaram o que para muitos é uma saia justa.
Em um deles, a professora Neiva Coelho Paim, de Porto Alegre, resume o espírito dessa experiência: "Antes de estruturarmos as mais complexas respostas e criarmos as mais profundas ansiedades, é necessário saber o que elas [as crianças] pensam sobre o assunto, como representam suas idéias e o que realmente gostariam de saber sobre sua própria sexualidade."
Em Sexualidade(s) e Infância(s), em vez de "dar aula" sobre educação sexual, os professores criam um ambiente para debates com muita música, desenhos, filmes, literatura e teatro. Descontraídas, as crianças se envolvem, se expressam e tiram suas dúvidas.
Com a mesma serenidade com que os professores trataram esse tema tão controvertido, Cláudia Ribeiro concedeu a entrevista a seguir.
Há uma forte resistência dos professores em tocar nesse assunto em sala de aula. Um dos motivos seria o temor de que ele sirva de estímulo a um envolvimento sexual precoce?
Cláudia Ribeiro - Isso é uma distorção, porque nós temos trabalhos pelo Brasil afora com crianças e adolescentes e é justamente o contrário que acontece: elas se tornam mais conscientes. Falta uma discussão maior sobre esse tema nos cursos de formação de educadores. Mas é um tema polêmico mesmo, que está aí desafiando os professores, e as escolas têm de inserir essa discussão dentro do seu projeto pedagógico e se perguntar como e por que introduzir a educação sexual, se estão incitando, se estão facilitando.
E qual é a opinião dos pais a esse respeito?
Cláudia Ribeiro - Eu estou desenvolvendo um trabalho em uma escola municipal de Porto Feliz (SP). O enfoque é pensar na singularidade daquele contexto, da cidade em que eu estou inserida. É um projeto que foi aprovado pela Faep (Faculdade de Educação da Unicamp), em que cada educador, cada grupo de trabalho, cada grupo de pesquisa da Unicamp está trabalhando um tema: um está trabalhando educação sexual, outro educação ambiental, língua portuguesa, etc. Nessa pesquisa, a gente esbarra no que se vê por aí afora, a dificuldade de inserir os temas, não por causa das crianças, que elas têm uma curiosidade incrível. O que a gente tem visto é que o medo das professoras é infundado. Na minha prática, eu nunca tive dificuldade com as famílias por estar discutindo o tema. Nós chamamos os pais para as reuniões, explicamos o tipo de trabalho e eles gostam imensamente.
A quem teme que a educação sexual incentive um envolvimento sexual precoce, a senhora apresenta o argumento de que não se deve fugir à abordagem desse tema, já que as crianças têm o interesse despertado por esse assunto desde cedo.
Cláudia Ribeiro - É, a criança é um ser sexuado desde o nascimento e nós já sabemos disso, por causa dos estudos de Freud, desde o início do século. Só que ainda carregamos essa tradição repressora da sexualidade que encara sexo como pecado. Aí, os educadores muitas vezes não têm essa discussão alargada sobre sexualidade, não pensam que a criança se interessa pelo tema desde a mais tenra idade. Elas têm paixão por saber de onde vieram, como chegaram à barriga da mãe. Meu estudo de mestrado inclusive se chama a Fala da Criança sobre Sexualidade Humana - o Dito, o Explícito e o Oculto (Ed. Mercado de Letras).
E como são as idéias infantis sobre a sexualidade?
Cláudia Ribeiro - Elas são diferentes das idéias que os adultos têm. Elas têm a ver com a maneira específica, especial, de a criança enxergar o mundo. Ela faz determinadas perguntas, e se a resposta lhe for negada, isso vai interferir na sua curiosidade, no ímpeto que ela tem de saber
Essa curiosidade é motivo de embaraço para adultos. Um dos relatos conta o caso do educador que não explica, quando lhe perguntam, para que serve o Tampax. Como o fato de não responder às perguntas afeta a percepção da criança sobre a sexualidade?
Cláudia Ribeiro - Eu não diria que isso é culpa dos pais ou dos educadores. Nós também fomos criados achando que sexualidade é um tema proibido. Agora, se nós passarmos isso para as crianças, elas também vão encarar o assunto dentro do silêncio, no espaço do não-dito, do oculto. As crianças têm o direito à intimidade, a manifestar sua sexualidade. Os jogos sexuais são importantíssimos para as crianças conhecerem seu próprio corpo, mas elas também têm direito à informação. Então o adulto precisa ter um bom senso enorme, respeitar a intimidade sem deixar de satisfazer a curiosidade. E, quando a gente penetra no jogo da criança, entra nesse movimento de responder às suas questões com naturalidade, o diálogo que se estabelece é muito bonito.
A senhora propõe esse diálogo aberto para favorecer a singularidade da criança e se contrapor ao discurso padronizado da mídia?
Cláudia Ribeiro - Esses temas expostos na mídia e proibidos na escola ou na família, a criança continua a aprender em silêncio, encarando a sexualidade como algo "feio". Mas a sexualidade é uma energia muito forte, muito mobilizadora. É uma dimensão expressiva do ser humano da relação com ele mesmo e com o outro, o desejo, o prazer, a responsabilidade. Isso muitas vezes é roubado das crianças e adolescentes que continuam vendo o que aparece na TV e nas revistas: preconceitos e padrões machistas e desrespeito à individualidade.
Esse diálogo aberto pode representar uma grande exposição para certos alunos. Tanto é que um dos relatos fala de uma caixa de dúvidas onde as crianças colocavam suas perguntas e, assim, preservavam sua privacidade.
Cláudia Ribeiro - É preciso não expor a criança e, para isso, a educadora nem deve se tomar como exemplo e nem transformar a sala de aula em consultório. É por isso que usamos muito as música, as histórias, a poesia, a representação por desenhos, porque é assim, nesse misto de realidade e fantasia, que ela constrói o seu conhecimento. O professor deve compreender essa construção cultural da sexualidade, que as coisas não foram sempre como são hoje. Deve entender o desenvolvimento infantil para saber as possibilidades que as crianças têm de compreensão do que está sendo veiculado pelos adultos e também conhecer metodologias de trabalho com a educação sexual. Esse é um grande desafio para nós. Por isso, seria muito importante “problematizar” essas questões todas nos cursos de formação dos educadores.
Existem políticas de capacitação de professores de educação sexual no Brasil?
Cláudia Ribeiro - São raros os cursos de pedagogia que têm esses temas sendo debatidos. Existem atualmente alguns cursos de especialização em sexualidade humana no Brasil. O nosso grupo de estudos da Unicamp oferece um deles, junto com a faculdade de medicina. Acho um avanço o educador estar inserindo esse tema no seu dia-a-dia, por causa dos Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC, mas não existe política de capacitação para que os professores entendam melhor que sexualidade é diferente de sexo, transa ou apenas coito. Existe uma infinidade de temas que as crianças e adolescentes poderiam estar abordando.
Isto me chamou a atenção em seu livro: o tratamento da educação sexual por meio de temas como casamento e família. Nas escolas não é comum fazer uma ligação entre esses temas e a educação sexual. Por quê?
Cláudia Ribeiro - Isso porque o senso comum estabelece a ligação apenas entre sexo e genitalidade. Mas sexualidade é muito mais abrangente do que a relação sexual e a reprodução. Diz respeito à maneira de ser das pessoas, seus sentimentos, seus relacionamentos. E falar dessas histórias de vida faz com que as pessoas busquem e construam sua singularidade. Tem o depoimento de uma menininha que descobriu que outra também não morava com o pai. Isso a fez se sentir bem, pois não era só ela que não tinha uma família padrão, nuclear: papai, mamãe e filhinho. Então, discutir essas coisas, com a mediação da professora, é fundamental para a sexualidade humana. No relato, por exemplo, da professora que fala da caixinha de dúvidas, ela estava trabalhando com ciências, disciplina em que geralmente esse assunto é proposto. Mas ele é deixado mais para o fim do ano e se espera que não dê tempo para não ter de abordá-lo.
Abordar exclusivamente o corpo humano parece ser a forma de mostrar que se reconhece a importância do tema, ao mesmo tempo que se foge do debate.
Cláudia Ribeiro - Sim, porque na maioria das vezes em que ele é trabalhado na escola fala-se só sobre o organismo, como se esse sistema sexual fosse só um aparelho reprodutor. Olha que nome horrível! E aí as pessoas dão aula, ensinam o que é pênis, o que é vagina, mas dos relacionamentos, do ficar, do namoro, da menstruação, disso não se fala. Eu não tenho de dar aula, mas sim desencadear um ambiente propício para a fala da criança, porque aí ela confronta hipóteses, os tipos de educação de seu grupinho, o que elas trazem de conhecimento sobre o assunto. Há turmas que acham que a gente está falando bobagem, falando coisa feia. Mas quando você começa a possibilitar esse ambiente descontraído, e nisso as músicas e histórias ajudam, pelo aspecto lúdico, prazeroso, você começa a fazer com que as crianças falem. Tudo pode ser tratado com uma discussão sobre músicas e textos de nossa literatura que permitam uma abordagem mais ampla, falando de sentimentos e não só de organismo.
Voltando ao ambiente favorável, necessário ao diálogo e em que se evita a exposição excessiva das crianças, como se dá a construção desse ambiente? Uma das questões é se o assunto deve ser tratado como tema transversal ou como disciplina isolada. Pelos relatos de seu livro, os professores têm preferido a segunda opção.
Cláudia Ribeiro - Veja, por exemplo, o relato que fala da música do Toquinho, De Umbigo a Umbiguinho, de uma professora da educação infantil. Ela trabalhou todo o desenvolvimento infantil - aspectos cognitivo, afetivo, físico - baseando-se numa pergunta que surgiu em sala: como nascem os bebês? Há propostas de trabalho específicos e grande parte dos trabalhos tem trazido esse tema transversalmente. Em outro relato, uma professora de 2.ª série de uma escola pública de São Paulo conta que trabalhou auto-estima, amizade, família, temas fundamentais para a sexualidade humana, quando ela estava trabalhando todos os assuntos que perpassam a educação sexual com textos e filmes que falavam de pais, mães, irmãos.
Nessa metodologia em que se utilizam músicas, filmes, textos e, principalmente, as dramatizações, trabalha-se a transformação de pessoas reais em personagens. Quais são as vantagens dessa metodologia e como ela ajuda no tratamento do tema?
Cláudia Ribeiro - Ajuda porque a criança está simbolizando, está trabalhando com representação, que é muito presente na vidinha dela: as histórias, os contos de fada, a fantasia e a imaginação. Quando criamos dois personagens, um menino e uma menina, e passamos a falar sobre eles, isso está ajudando a criança a elaborar sua vidinha pessoal sem exposição. Há o filme do Dumbo, que nós citamos no livro, em que cada animalzinho de um jardim zoológico é trazido pelo bico da cegonha. A gente passa o filme e pergunta se elas acham que isso é possível. Só com essa pergunta você desencadeia toda uma discussão. Umas acham que sim, outras não têm informação nenhuma. E a partir daí a gente levanta as hipóteses que as crianças têm sobre o tema, a gente vai discutindo realidade e fantasia.
Vamos voltar à questão sobre a criança elaborar sua própria vida com base em representações. E quando a criança se traveste de dançarina de pagode, reproduz as coreografias desses grupos e canta as suas músicas? Essa erotização a preocupa ou isso faz parte da construção da sexualidade?
Cláudia Ribeiro - O que me preocupa é nós deixarmos que as crianças tenham contato só com esse tipo de estímulo. Você vê no livro quanta música bonita tem naquele disco do Toquinho que fala dos direitos da criança. E na maioria das vezes esse tipo de música não é tocado. As crianças não têm acesso a elas pela mídia. E o próprio Toquinho diz que, quando compôs essas músicas com o Elifas Andreato, não pensou em subestimar a inteligência das crianças. Ele usou palavras difíceis, mas o adulto deve estar junto com as crianças para elas entenderem o texto, enquanto a melodia e a harmonia trabalham com a sensibilidade infantil. O que me preocupa é estarem reduzindo um universo que é amplo, interessante, sensível, leve e profundo a esse tipo de música somente. E também não é discutido por que o corpo é usado na mídia, por que há tanta valorização agora das formas masculinas e femininas. São essas questões que devem ser problematizadas.
Pedagogia que têm debatido esses temas.
Você já deve ter visto esta cena antes: uma criança pergunta à mãe como seu irmãozinho foi parar na barriga dela. A mãe finge não ouvir e desconversa. Ou que tal esta: um garoto desliza a mão para dentro do calção. O reflexo da monitora da creche é repreendê-lo por "isso". Também leva bronca quem cometer a traquinice de afagar o(a) coleguinha ou, mais inocente ainda, fizer cócegas nele(a).
Tudo isso porque um belo dia, quando a criança tem entre dois e seis anos, a sexualidade infantil - que parecia adormecida - acorda, toma sua vitamina e não pára de aprontar uma impertinência atrás da outra. Uma curiosidade insaciável sobre a diferença entre os corpinhos ou o nascimento dos bebês toma conta das crianças.
E agora: deve-se explicar tudo tintim por tintim ou é melhor adiar essa conversa, contando aquela da cegonha? Para buscar ajuda especializada, muitos pais recorrem às livrarias. Na hora de ampliar o acervo dos pimpolhos, Como Nascem os Bebês? ou De onde Viemos? vêm logo atrás dos contos da carochinha na lista dos livros mais procurados.
E os professores, como reagem a essas inquietações? Que material usam para tratar tema tão delicado? Foi isso que a professora Cláudia Ribeiro resolveu investigar. O resultado é o livro Sexualidade(s) e Infância(s) - A Sexualidade como um Tema Transversal.
Escrita a quatro mãos com Ana Maria Faccioli de Camargo, essa obra é uma coletânea de experiências pedagógicas. Em doze relatos, educadores - de Guaxupé (MG) a São Paulo (SP) -, contam como superaram o que para muitos é uma saia justa.
Em um deles, a professora Neiva Coelho Paim, de Porto Alegre, resume o espírito dessa experiência: "Antes de estruturarmos as mais complexas respostas e criarmos as mais profundas ansiedades, é necessário saber o que elas [as crianças] pensam sobre o assunto, como representam suas idéias e o que realmente gostariam de saber sobre sua própria sexualidade."
Em Sexualidade(s) e Infância(s), em vez de "dar aula" sobre educação sexual, os professores criam um ambiente para debates com muita música, desenhos, filmes, literatura e teatro. Descontraídas, as crianças se envolvem, se expressam e tiram suas dúvidas.
Com a mesma serenidade com que os professores trataram esse tema tão controvertido, Cláudia Ribeiro concedeu a entrevista a seguir.
Há uma forte resistência dos professores em tocar nesse assunto em sala de aula. Um dos motivos seria o temor de que ele sirva de estímulo a um envolvimento sexual precoce?
Cláudia Ribeiro - Isso é uma distorção, porque nós temos trabalhos pelo Brasil afora com crianças e adolescentes e é justamente o contrário que acontece: elas se tornam mais conscientes. Falta uma discussão maior sobre esse tema nos cursos de formação de educadores. Mas é um tema polêmico mesmo, que está aí desafiando os professores, e as escolas têm de inserir essa discussão dentro do seu projeto pedagógico e se perguntar como e por que introduzir a educação sexual, se estão incitando, se estão facilitando.
E qual é a opinião dos pais a esse respeito?
Cláudia Ribeiro - Eu estou desenvolvendo um trabalho em uma escola municipal de Porto Feliz (SP). O enfoque é pensar na singularidade daquele contexto, da cidade em que eu estou inserida. É um projeto que foi aprovado pela Faep (Faculdade de Educação da Unicamp), em que cada educador, cada grupo de trabalho, cada grupo de pesquisa da Unicamp está trabalhando um tema: um está trabalhando educação sexual, outro educação ambiental, língua portuguesa, etc. Nessa pesquisa, a gente esbarra no que se vê por aí afora, a dificuldade de inserir os temas, não por causa das crianças, que elas têm uma curiosidade incrível. O que a gente tem visto é que o medo das professoras é infundado. Na minha prática, eu nunca tive dificuldade com as famílias por estar discutindo o tema. Nós chamamos os pais para as reuniões, explicamos o tipo de trabalho e eles gostam imensamente.
A quem teme que a educação sexual incentive um envolvimento sexual precoce, a senhora apresenta o argumento de que não se deve fugir à abordagem desse tema, já que as crianças têm o interesse despertado por esse assunto desde cedo.
Cláudia Ribeiro - É, a criança é um ser sexuado desde o nascimento e nós já sabemos disso, por causa dos estudos de Freud, desde o início do século. Só que ainda carregamos essa tradição repressora da sexualidade que encara sexo como pecado. Aí, os educadores muitas vezes não têm essa discussão alargada sobre sexualidade, não pensam que a criança se interessa pelo tema desde a mais tenra idade. Elas têm paixão por saber de onde vieram, como chegaram à barriga da mãe. Meu estudo de mestrado inclusive se chama a Fala da Criança sobre Sexualidade Humana - o Dito, o Explícito e o Oculto (Ed. Mercado de Letras).
E como são as idéias infantis sobre a sexualidade?
Cláudia Ribeiro - Elas são diferentes das idéias que os adultos têm. Elas têm a ver com a maneira específica, especial, de a criança enxergar o mundo. Ela faz determinadas perguntas, e se a resposta lhe for negada, isso vai interferir na sua curiosidade, no ímpeto que ela tem de saber
Essa curiosidade é motivo de embaraço para adultos. Um dos relatos conta o caso do educador que não explica, quando lhe perguntam, para que serve o Tampax. Como o fato de não responder às perguntas afeta a percepção da criança sobre a sexualidade?
Cláudia Ribeiro - Eu não diria que isso é culpa dos pais ou dos educadores. Nós também fomos criados achando que sexualidade é um tema proibido. Agora, se nós passarmos isso para as crianças, elas também vão encarar o assunto dentro do silêncio, no espaço do não-dito, do oculto. As crianças têm o direito à intimidade, a manifestar sua sexualidade. Os jogos sexuais são importantíssimos para as crianças conhecerem seu próprio corpo, mas elas também têm direito à informação. Então o adulto precisa ter um bom senso enorme, respeitar a intimidade sem deixar de satisfazer a curiosidade. E, quando a gente penetra no jogo da criança, entra nesse movimento de responder às suas questões com naturalidade, o diálogo que se estabelece é muito bonito.
A senhora propõe esse diálogo aberto para favorecer a singularidade da criança e se contrapor ao discurso padronizado da mídia?
Cláudia Ribeiro - Esses temas expostos na mídia e proibidos na escola ou na família, a criança continua a aprender em silêncio, encarando a sexualidade como algo "feio". Mas a sexualidade é uma energia muito forte, muito mobilizadora. É uma dimensão expressiva do ser humano da relação com ele mesmo e com o outro, o desejo, o prazer, a responsabilidade. Isso muitas vezes é roubado das crianças e adolescentes que continuam vendo o que aparece na TV e nas revistas: preconceitos e padrões machistas e desrespeito à individualidade.
Esse diálogo aberto pode representar uma grande exposição para certos alunos. Tanto é que um dos relatos fala de uma caixa de dúvidas onde as crianças colocavam suas perguntas e, assim, preservavam sua privacidade.
Cláudia Ribeiro - É preciso não expor a criança e, para isso, a educadora nem deve se tomar como exemplo e nem transformar a sala de aula em consultório. É por isso que usamos muito as música, as histórias, a poesia, a representação por desenhos, porque é assim, nesse misto de realidade e fantasia, que ela constrói o seu conhecimento. O professor deve compreender essa construção cultural da sexualidade, que as coisas não foram sempre como são hoje. Deve entender o desenvolvimento infantil para saber as possibilidades que as crianças têm de compreensão do que está sendo veiculado pelos adultos e também conhecer metodologias de trabalho com a educação sexual. Esse é um grande desafio para nós. Por isso, seria muito importante “problematizar” essas questões todas nos cursos de formação dos educadores.
Existem políticas de capacitação de professores de educação sexual no Brasil?
Cláudia Ribeiro - São raros os cursos de pedagogia que têm esses temas sendo debatidos. Existem atualmente alguns cursos de especialização em sexualidade humana no Brasil. O nosso grupo de estudos da Unicamp oferece um deles, junto com a faculdade de medicina. Acho um avanço o educador estar inserindo esse tema no seu dia-a-dia, por causa dos Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC, mas não existe política de capacitação para que os professores entendam melhor que sexualidade é diferente de sexo, transa ou apenas coito. Existe uma infinidade de temas que as crianças e adolescentes poderiam estar abordando.
Isto me chamou a atenção em seu livro: o tratamento da educação sexual por meio de temas como casamento e família. Nas escolas não é comum fazer uma ligação entre esses temas e a educação sexual. Por quê?
Cláudia Ribeiro - Isso porque o senso comum estabelece a ligação apenas entre sexo e genitalidade. Mas sexualidade é muito mais abrangente do que a relação sexual e a reprodução. Diz respeito à maneira de ser das pessoas, seus sentimentos, seus relacionamentos. E falar dessas histórias de vida faz com que as pessoas busquem e construam sua singularidade. Tem o depoimento de uma menininha que descobriu que outra também não morava com o pai. Isso a fez se sentir bem, pois não era só ela que não tinha uma família padrão, nuclear: papai, mamãe e filhinho. Então, discutir essas coisas, com a mediação da professora, é fundamental para a sexualidade humana. No relato, por exemplo, da professora que fala da caixinha de dúvidas, ela estava trabalhando com ciências, disciplina em que geralmente esse assunto é proposto. Mas ele é deixado mais para o fim do ano e se espera que não dê tempo para não ter de abordá-lo.
Abordar exclusivamente o corpo humano parece ser a forma de mostrar que se reconhece a importância do tema, ao mesmo tempo que se foge do debate.
Cláudia Ribeiro - Sim, porque na maioria das vezes em que ele é trabalhado na escola fala-se só sobre o organismo, como se esse sistema sexual fosse só um aparelho reprodutor. Olha que nome horrível! E aí as pessoas dão aula, ensinam o que é pênis, o que é vagina, mas dos relacionamentos, do ficar, do namoro, da menstruação, disso não se fala. Eu não tenho de dar aula, mas sim desencadear um ambiente propício para a fala da criança, porque aí ela confronta hipóteses, os tipos de educação de seu grupinho, o que elas trazem de conhecimento sobre o assunto. Há turmas que acham que a gente está falando bobagem, falando coisa feia. Mas quando você começa a possibilitar esse ambiente descontraído, e nisso as músicas e histórias ajudam, pelo aspecto lúdico, prazeroso, você começa a fazer com que as crianças falem. Tudo pode ser tratado com uma discussão sobre músicas e textos de nossa literatura que permitam uma abordagem mais ampla, falando de sentimentos e não só de organismo.
Voltando ao ambiente favorável, necessário ao diálogo e em que se evita a exposição excessiva das crianças, como se dá a construção desse ambiente? Uma das questões é se o assunto deve ser tratado como tema transversal ou como disciplina isolada. Pelos relatos de seu livro, os professores têm preferido a segunda opção.
Cláudia Ribeiro - Veja, por exemplo, o relato que fala da música do Toquinho, De Umbigo a Umbiguinho, de uma professora da educação infantil. Ela trabalhou todo o desenvolvimento infantil - aspectos cognitivo, afetivo, físico - baseando-se numa pergunta que surgiu em sala: como nascem os bebês? Há propostas de trabalho específicos e grande parte dos trabalhos tem trazido esse tema transversalmente. Em outro relato, uma professora de 2.ª série de uma escola pública de São Paulo conta que trabalhou auto-estima, amizade, família, temas fundamentais para a sexualidade humana, quando ela estava trabalhando todos os assuntos que perpassam a educação sexual com textos e filmes que falavam de pais, mães, irmãos.
Nessa metodologia em que se utilizam músicas, filmes, textos e, principalmente, as dramatizações, trabalha-se a transformação de pessoas reais em personagens. Quais são as vantagens dessa metodologia e como ela ajuda no tratamento do tema?
Cláudia Ribeiro - Ajuda porque a criança está simbolizando, está trabalhando com representação, que é muito presente na vidinha dela: as histórias, os contos de fada, a fantasia e a imaginação. Quando criamos dois personagens, um menino e uma menina, e passamos a falar sobre eles, isso está ajudando a criança a elaborar sua vidinha pessoal sem exposição. Há o filme do Dumbo, que nós citamos no livro, em que cada animalzinho de um jardim zoológico é trazido pelo bico da cegonha. A gente passa o filme e pergunta se elas acham que isso é possível. Só com essa pergunta você desencadeia toda uma discussão. Umas acham que sim, outras não têm informação nenhuma. E a partir daí a gente levanta as hipóteses que as crianças têm sobre o tema, a gente vai discutindo realidade e fantasia.
Vamos voltar à questão sobre a criança elaborar sua própria vida com base em representações. E quando a criança se traveste de dançarina de pagode, reproduz as coreografias desses grupos e canta as suas músicas? Essa erotização a preocupa ou isso faz parte da construção da sexualidade?
Cláudia Ribeiro - O que me preocupa é nós deixarmos que as crianças tenham contato só com esse tipo de estímulo. Você vê no livro quanta música bonita tem naquele disco do Toquinho que fala dos direitos da criança. E na maioria das vezes esse tipo de música não é tocado. As crianças não têm acesso a elas pela mídia. E o próprio Toquinho diz que, quando compôs essas músicas com o Elifas Andreato, não pensou em subestimar a inteligência das crianças. Ele usou palavras difíceis, mas o adulto deve estar junto com as crianças para elas entenderem o texto, enquanto a melodia e a harmonia trabalham com a sensibilidade infantil. O que me preocupa é estarem reduzindo um universo que é amplo, interessante, sensível, leve e profundo a esse tipo de música somente. E também não é discutido por que o corpo é usado na mídia, por que há tanta valorização agora das formas masculinas e femininas. São essas questões que devem ser problematizadas.
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